'Microtrabalhos' exaustivos que atraem mulheres com promessa de renda em casa
“Se não bato meta, espero o dia virar e recomeço”
Flávia começou a trabalhar como camelô aos 20 anos e, até hoje, aos 32, nunca teve um emprego formal.
Mãe solo de três filhos — de 15, 13 e 8 anos —, enfrentou dificuldades maiores com a crise da pandemia. Foi nesse período que conheceu o microtrabalho digital: tarefas simples e repetitivas em plataformas que pagam por tarefa concluída.
Hoje, ela trabalha até 14 horas por dia no PiniOn (avaliando apps de transporte) e no Kwai (assistindo vídeos). “Se não bater a meta, fico até 23h. Aí, tem que esperar virar o dia para poder começar de novo”, relata.
Com cerca de 420 horas de tela por mês, ela ganha menos de R$ 700 para sustentar cinco pessoas. Passou a tentar também a Shopee, divulgando links de produtos por comissão.
Ela ainda acumula todo o trabalho doméstico: “Faço uma atividade, entro um pouquinho [nas plataformas]. Faço outra, volto”. O esforço excessivo já afeta sua saúde: “Olhos ardendo, ombros queimando”.
“Deito na cama, boto os vídeos para tocar e deixo rolando [automaticamente], já dá para descansar um pouco.”
Posição das plataformas
Kwai: afirma não incentivar visualizações contínuas e diz aprimorar suas políticas.
PiniOn: diz que atividades são voluntárias e limitadas diariamente, como forma de renda extra.
Shopee: afirma que o programa de afiliados é voluntário e oferece apoio aos participantes.
Microtrabalho no Brasil tem rosto feminino
Segundo o estudo "Fabricar os dados", da UEMG, 63% dos microtrabalhadores no Brasil são mulheres — o oposto de países onde homens representam 70%.
A informalidade no país, que atinge 40% da população, colabora com esse cenário. Entre as mulheres microtrabalhadoras:
- 73,7% estão desempregadas
- 38,7% dependem exclusivamente das plataformas
- 40% têm formação superior, mas sem emprego em suas regiões
- 62,6% são mães ou cuidadoras
Segundo Matheus Viana Braz, da UEM, o principal atrativo é a possibilidade de conciliar trabalho com os cuidados familiares, ainda que isso acarrete impactos físicos e mentais.
“É uma condição extremamente inadequada de trabalho.”
As mulheres fazem sessões curtas e fragmentadas, encaixadas entre tarefas domésticas. Isso causa exaustão, ansiedade e isolamento.
O caso de Juliana
Desempregada há seis meses, Juliana encontrou no Telegram a promessa de ganhar de R$ 5 a R$ 10 por curtida em produtos do Magazine Luiza.
Das 9h às 21h, ela cumpre tarefas silenciosas. Sua renda com microtarefas ajuda a pagar contas básicas. “Espero que tenha o meu salário”, diz.
O Magazine Luiza nega envolvimento com qualquer atividade via Telegram ou WhatsApp e alerta para golpes com uso indevido do nome da empresa.
Sem formação profissional
Flávia e Juliana não desenvolvem novas habilidades com essas tarefas. Além disso, mulheres são pouco representadas em cargos estratégicos ou de prestígio nas big techs, segundo Luiza Corrêa Dutra, da PUC-RS.
“O ambiente digital pode reforçar desigualdades e papéis históricos.”
Sem leis trabalhistas
O microtrabalho ainda não é regulamentado no Brasil. A Europa deve liderar esse processo, segundo Braz.
O projeto Fairwork avalia plataformas quanto à justiça em pagamentos e condições de trabalho, mas mudanças ainda são pontuais.
Em 2025, o Ministério Público do Trabalho criou o grupo Crowdworking para estudar o tema.
Segundo Renan Kalil, do Insper, muitas plataformas nem têm representação jurídica no Brasil, o que dificulta ações legais.
Em 2022, a empresa Ixia foi condenada a reconhecer vínculo empregatício e pagar R$ 1,3 milhão por danos morais coletivos. Ela exigia que os trabalhadores se registrassem como MEI para tarefas ligadas à Sky.
“Por trás da inteligência artificial, há seres humanos invisíveis”, diz Dutra.
Apesar da promessa de liberdade, o microtrabalho digital perpetua precariedade, invisibilidade e desigualdade.